segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Kierkegaard, um espírito angustiado, por Fabrício da Silva Brandão

Sören Aabye Kierkegaard

UM ESPIRÍTO ANGUSTIADO

Fabrício da Silva Brandão*

“A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás; mas só pode ser vivida olhando-se para a frente”.
(Sören Aabye Kierkegaard)

Sören Aabye Kierkegaard nasceu em 05 de maio de 1813, em Copenhague, Dinamarca. Era filho de um comerciante casado em segundas núpcias com uma doméstica. Deste segundo casamento, nasceram sete filhos, do qual Sören foi o último sendo seus pais já relativamente idosos. Cinco de seus irmãos morreram; já ele morreu aos 42 anos de idade.
Foi ele o único sobrevivente dos seus irmãos, depois se tornou bispo luterano. Em sua família, sobretudo em relação à figura do pai, Kierkegaard julgava ver a marca de um destino trágico e misterioso. Ele falava que seu pai possuía uma obscura culpa, e foi à descoberta desta que, segundo Kierkegaard, constituiu-se no "grande terremoto" de sua vida. Não temos certeza do que tenha sido esta culpa paterna, mas, seja lá o que fosse ao determinar um relacionamento mais complexo e doído com seu pai, acabaria por representar uma espécie de lâmpada no escuro, permitindo-lhe desenvolver uma compreensão religiosa “existencialista” de sua vida. Herdeiro de uma melancolia religiosa quase doentia que impregnava sua família, este "espinho na carne", essa busca de se entregar ao verdadeiro sentido divino da existência, levou Kierkegaard a renunciar a realização de seu ideal ético e humano de se casar com a bela e doce Regina Olsen. Mesmo apaixonado, Kierkegaard pensava que "um penitente como eu, com a minha vida ante acta e a minha melancolia... já devia ser suficiente", ou seja, ele não queria expor sua amada à angustia de sua busca espiritual, nem queria que o casamento fosse empecilho a isto, o que não o impediu de sofrer amargamente até o fim da vida a perda de sua paixão: "eu serei teu ou te será permitido me ferir tão profundamente, no mais íntimo de minha melancolia e de minha relação com Deus que, ainda que de ti tenho separado, continuo sendo teu". Para ele, um penitente, alguém que se entrega ao ideal cristão da vida, com toda a radical seriedade que isto implica, não poderia viver a serena existência de um homem casado. Ele não poderia aceitar a sua inscrição na ordem constituída. Não poderia ser mais um homem entre tantos outros homens.

Na opinião de Kierkegaard, um penitente, alguém que abraçou o ideal cristão da vida, com toda aquela tremenda seriedade que o cristianismo comporta, não pode viver a tranqüila existência de homem casado. Ele não pode aceitar o compromisso mundano e a gratificante inserção na ordem constituída. Regina não podia tornar-se sua esposa “por que Deus tinha a precedência”. E essa também é a razão por Kierkegaard renunciou a tornar-se pastor. (REALLE, GIOVANNI, DO ROMANTISMO ATÉ NOSSOS DIAS, 1991 P. 237)

Ele queria ser, antes de tudo, cristão. Regina, mais tarde, casou-se com outra pessoa, mas Kierkegaard nunca a esqueceu, e nutria a cândida esperança de que a oposição ferrenha do mundo à sua filosofia pudesse conferir aos olhos de Regina um novo valor à sua vida, e pudesse, assim, perdoá-lo pelos sofrimentos decorrentes do rompimento do noivado que, ademais, foi o suficiente para por quase toda a burguesia de Copenhague contra ele.
Desde muito cedo, Kierkegaard foi vítima de chacotas e toda de sorte de agressividade. Tudo isso por causa de sua ferrenha crítica de toda a cultura européia e da filosofia hegeliana, bem como da filosofia romântica, naquilo em que elas demonstraram ser excessivamente parciais: a ênfase quase que exclusiva no universal e no coletivo em detrimento do individual.
Se a vida de Kierkegaard em casa era levada da forma que um de seus colegas de infância descreveu como um crepúsculo místico de “rigidez e excentricidade, ’ sua carreira na escola Particular que freqüentou não serviu de alívio. (GARDINER, 1988 P. 12)
Isto parecia tirar e, de fato, formava um pretexto ideal para tirar mesmo a responsabilidade individual perante a própria vida, responsabilidade essa que também influi no social. Kierkegaard costumava dizer que seu tempo se caracterizava por uma ingênua aceitação das premissas burguesas e de idéias vindas de cima para baixo, sem questionamento. Tempo em que não se via quase nenhuma paixão e engajamento em valores espiritualmente significativos, criticando, por isso, a atitude preguiçosa e acomodada da Igreja. Ser cristão, para ele, significara seguir, de verdade, na prática, toda a práxis deixada por Jesus:
"O Cristianismo é de uma seriedade tremenda (...). Ser Cristão é sê-lo no espírito, é a inquietude mais elevada do espírito (...)". Entretanto, depois de dois mil anos, "tudo se tornou superficialidade na cristandade atual". O que há é uma disputa calculada para se manter o poder de consciências, e Kierkegaard se choca diante da realidade última de que, dentre todas as chamadas heresias, ninguém se dê conta da mais perigosa e sutil de todas: a de "fingir ou brincar de cristianismo", como o fazem as igrejas católica e protestante.

A ironia Socrática será uma constante nos escritos de Kierkegaard, ela serve como estratégia para o autor criticar a cristandade de sua época e a filosofia sistemática e especulativa. Ele tal como Sócrates, adota o não saber a fim de mostrar o vazio dos discursos de seus interlocutores. (FILOSOFIA DISCUTINDO, ANO 03; Nº 12 P. 39)

Kierkegaard, por ser uma pessoa que criticando os sistemas de sua época, como a cristandade, vê seu pensamento começar a ser mais conhecido depois da Primeira guerra Mundial, notadamente entre os alemães, que descobrem nas suas criticas á cristandade um parceiro para suas angústias religiosas. Desse modo Kierkegaard entra, por assim dizer, para o chamado cânone filosófico.

O HOMEM É ESPIRITO

O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, mais e melhor do que na relação propriamente dita. Não é a relação de dois termos uma síntese. O “eu” não existem ainda sob este ponto de vista.O homem é espírito. E o espírito é o eu do homem. É uma relação que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas apenas consigo mesma. (KIERKEGAARD, 2004. P. 19)
A inocência é a ignorância. Inocente, o homem ainda não está determinado como espírito, ainda que a alma conserve uma unidade imediata com o seu ser natural. Tal interpretação está inteiramente de acordo com a Bíblia que, não concedendo ao homem em estado de inocência a capacidade de discernir entre o bem e o mal, condena todas as meritórias fantasias católicas. Em tal estado, há calma e descanso; porém existe,a o mesmo tempo, outra coisa que, entretanto, não é perturbação nem luta, porque não existe nada contra que lutar. O que existe então? Nada. Que efeito produz porém, este nada? Esse nada dá nascimento á angústia. Ai está o mistério profundo da vida: é, ao mesmo tempo, angústia. Sonhador, o espírito projeta a sua própria realidade, que é um átimo (instante), e a inocência vê sempre e sempre, diante de si, esse nada.
O ser humano é uma síntese de alma e corpo; apenas esta se torna inimaginável se ambos os elementos não se reunirem em um terceiro. O terceiro é o espírito. No estado de inocência, o homem não é apenas um animal e, finalmente, se alguma vez o fosse em qualquer instante de sua existência, nunca se tornaria homem. De outro modo, o espírito é uma potencia amiga que deseja constituir a relação. (KIERKEGAARD, 2007. p. 52)
Quando no Gênesis, Deus declara a Adão: “Porém, os frutos da árvore do bem e do mal na comerás”, está claro que, no intimo, Adão não entendia a frase; porque, como poderia entender a diferença entre o bem e o mal se a diferenciação apenas se fixou após ter sido saboreado o fruto? Neste caso de Adão o desejo fez com que ele fosse a primeira presa para o uso do poder. É esta possibilidade que Adão, traz para o resto humanidade uma vez que ele sai do estado de inocência e se joga no mundo. O espírito dá a Adão o desejo a inquietação de desvendar aquilo que para ele é desconhecido. O espírito é para Kierkegaard o que modelador do homem enquanto ser, alma. Ela deve dá vida a este ser que vive em constante conflito consigo mesmo. Quando no Gênese Deus proíbe Adão e Eva de comerem do fruto proibido e depois fala que eles morreram, eles estão inocentes a essas realidades, que até então não foi conhecida por eles, mas, desejadas por eles depois de apresentadas. Kierkegaard aborda o homem através do estudo do seu espírito, pois sendo para ele o espírito aquele que dá uma
identidade ao ser, busca por meio do meio teológico concretizar seu pensamento, sendo ele mesmo o “poeta cristão”.
É o poeta cristão que “não crê em si mesmo, mas somente em Deus. Passa a enxergar a sua vida e acontecimentos advindos da misericórdia de Deus. Se tornou o próprio construtor de sua história, mesmo que guiado por um Ser Superior” (REALE, 2005. p 228)
Enquanto o homem se manifesta como consciente de seu espírito e de sua possível liberdade ele já não se encontra naquele estado de espírito inocente, em sonho, mas sim em um estado de pecado. Pois, para Kierkegaard, o homem só é inocente quando desconhece aquilo que desconheceu o próprio Adão, no paraíso a sua própria vontade. Vou levado por um desejo que até então ele desconhecia o prazer de tal ato e fim último.
“Quando Kierkegaard, em sua época via aquela sociedade sendo aniquilada pelos falsos profetas e pastores”, dizia um verdadeiro cristão não era o exemplo passado por aqueles pastores que a verdade era uns canalhas, onde suas funções eram a de satisfazer a eternidade, mas eles pretendiam satisfazer o tempo; são “velhacos” que consideram que “é mais cômodo adular os contemporâneos”. Nisto Kierkegaard em suma apresenta que a o cristianismo que é a verdade por parte de Deus, e não por parte dos homens só seria bem vivida se cada pessoa começasse a vivê-la com o espírito e não por meio medo.
Quando o homem se vê amedrontado do espírito, ele fica sujeito aos perigos como o desespero do eterno ou de si mesmo seria mais apropriadamente considerado um destes perigos que é o "desespero da própria fraqueza", subvertendo com fins didáticos o título da ampla categoria em que se insere. Aquele que o apresenta possui maior compreensão da eternidade subjacente ao eu e do próprio eu, assim como do significado do desespero, o que o faz sofrer não de um mal que sobre ele incida em maior ou em menor grau, como se verifica no desespero do temporal, mas sim de um mal que tem no próprio indivíduo a sua gênese, no autoconhecimento que ele desenvolve. Por conseguinte ele não suporta mais o seu eu e quer dele se livrar, ainda que assuma um acentuado hermetismo em sua postura, sepultando esses conflitos em sua interioridade e sendo o perfeito oposto do já comentado indivíduo espontâneo. Kierkegaard acentua a possibilidade do suicídio como forma de se desvencilhar desse eu de sofrimento, ou mais oportunamente, a fé. Ela dar ao ser humano um sentido, explicação para entender aquilo que a nossa razão não consegue explicar. (Kierkegaard, 2007).
Para Kierkegaard a consciência do espírito no homem não o impede de levá-lo a pecar, somente quando ele toma consciência deste espírito e que é também espírito deve se responsabilizar por todos os seus atos. O espírito é aquele que uma vez constatado pelo homem pode salvar ou condenar o homem.[1]
Ele dá ao homem o poder de ser “livre”, pois a cada ato realizado por força do espírito mais perto daquilo que chamamos de perfeição ficaremos. É claro que este mesmo espírito é a causa e motivo pelo qual possa ser salvo ou condenado. O homem enquanto espírito puro, inocente é um ser que ainda não age segundo as influencias ou pelo menos não tem consciência de seus atos enquanto errado e certo. Ele age segundo a natureza da pureza, como Adão comeu a fruta que Eva lhe deu. Até então não conheciam as conseqüências ou o próprio mau.
O HOMEM ESTÉTICO

O individuo estético, não procura impor um padrão coerente a sua vida, com a origem numa nação unitária de si mesmo e do que ele deveria ser; ao contrário, ele permite que “o que acontece” aja sobre ele e o governe seu comportamento.
A reflexão introspectiva pode demonstrar isso, e quando acontece é capaz de produzir um sentimento disseminado de desespero em tal ser; toda a sua vida no geral e não somente em determinados aspectos pode parecer apoiada em bases incertas e esvaziadas de significado.

Ele permanece profundamente enraizado em seu próprio modo de vida e pensamento para tentar se libertar. Assim, ele tenta, por meio de uma variedade de estratagemas, evitar que a verdade se instale nele. Isso acontece, ás vezes, com vários tipos de atividade, que pode assumir uma forma “demoníaca”, como no caso de Fausto;... (KIERKEGAARD, 2001. p. 55)

Kierkegaard delineia o ideal estético da vida do sedutor, que vive segundo a segundo, dispensando-se na multiplicidade sem autêntico empenho ético. Representa uma opção pelo prazer, pela estrutura, pelo descompromisso com o próximo, pelo egoísmo, pelo apego ao mundo material, pelo utilitarismo.

É a existência na qual o objetivo maior é a satisfação dos desejos hedonistas. É a procura de uma liberdade sem limites, do prazer perfeito. A existência estética plena é aquela voltada para o instante, sem compromisso nem como passado nem com o futuro. O instante é vivido como se fosse eterno, porque é portador de tudo aquilo que o homem estético busca que é o prazer. ”( Hryniewicz, Severo. Para filosofar; 5ª ed. Editora: .Santelena.; p. 450)

Contudo, a insatisfação lhe é companheira, por que o prazer perfeito nunca é atingido e o instante é fugido. A melhor expressão da vida estética é Don Juan, de Mozart

Don Juan é o perfeito hedonista, ao se relacionar com uma amante, não a tratava como pessoa, mas como instrumento de prazer. Passava de uma mulher para a outra por que nenhuma lhe dava prazer em sua plenitude; sempre esperava que a próxima pudesse fazê-lo, porém nenhuma conseguiu lhe proporcionar tal ato perfeito. Hryniewicz, Severo. Para filosofar; 5ª ed. Editora: Santelena.; p. 450)

O homem estético pode fazer coisas sérias e, aparentemente, desvinculadas do prazer: rezar, trabalhar ou estudar, mas tudo que faz visa ao prazer.

O HOMEM ÉTICO

Este tem um tipo de vida movida por um páthos existencial radicalmente diferente do anterior, no qual o prazer era a meta. Agora o páthos que comanda a existência é o do dever. Trata-se de uma escolha que surge de uma conversão corajosa de quem reconhece a importância do outro e da vida social em geral. Ele absorve as regras sociais e morais de tal modo que, em tudo que faz, procura o cumprimento do dever. Não há outra causa que o motive mais á ação que a vida perfeitamente adequada aos padrões racionais.

É o exemplo típico do homem que cumpre rigorosamente seus deveres: enquanto homem casado, é fiel á esposa; em seu trabalho, observa os horários e não se corrompe; cumpre formalmente as obrigações religiosas etc... No entanto, o que o motiva é o cumprimento do dever. (Hryniewicz, Severo. Para filosofar; 5ª ed. Editora: Santelena.; p. 452)

O estádio ético não destrói a dimensão estética da natureza humana, mas incorpora-a (dialética). O casamento é a situação ideal de realização deste tipo de existência: a busca do prazer não é aniquilada, mas orientada pelos princípios da fidelidade matrimonial, pelas convenções sociais e pela moral vigente.
No entanto, tal como a vida estética, também a existência ética acaba por gerar a insatisfação. As normas e as convenções são genéricas, não tocam a intimidade do individuo e não satisfazem seus anseios mais pessoais. O existente decompõe-se, perde-se nas generalidades e acaba por sentir-se negado em sua individualidade.

Sentindo-se alienado, o homem ético pode vir a arrepender-se da vida que leva e iniciar o salto para um grau superior. Na obra A alternativa, Kierkegaard fala do arrependimento não como remorso por uma falta, mas como um mal-estar provocado pelo conjunto da existência que se leva . (Hryniewicz, Severo. Para filosofar; 5ª ed. Editora: Santelena.; p. 452)

O homem ético busca ser sempre este ser que age conscientemente, buscando sempre fazer aquilo que é correto, para não contrariar seus valores e os da sociedade.

O HOMEM RELIGIOSO
O homem religioso é um ser que vive entorpecido, pois a todo instante necessita de algo que transcende sua existência para fazê-lo entender sua própria vida. É ela que faz com que ele tenha uma alma piedosa, boa, que ame e respeite as pessoas.

O arrependimento é “a expressão mais elevada da concepção ética da vida” afirma Kierkegaard no Diário, “e sempre devo arrepender-me; mas é justamente esta a contradição da ética, que dá origem ao paradoxo da religião, isto é a Redenção, á qual corresponde a Fé. Diário, Trad. Fabro, 720)

Na obra A repetição, introduz a temática, apontando as insuficiências da vida ética, particularmente a impossibilidade de esta justificar muitas situações da existência concreta. O caso de seu relacionamento com Regina é um bom exemplo: perante a moral convencional é um ato condenável, no entanto não poderia ser justificado de um outro modo perante? Perante Deus, por exemplo? Fazer coisas para agradar á moral convencional, não pode significar trair convicções próprias do individuo diante de Deus?
Kierkegaard faz longas considerações sobre os impasses entre a vida religiosa e moral, resolvendo a questão em favor da supremacia absoluta do chamado divino em relação aos comandos morais. Segundo a moral, o que interessa é cumprir o dever, não importando o contexto.

Assim ela se torna uma espécie de moral geral, subordinando a ela a vida religiosa. as exigências da vida religiosa são muito mais que o cumprimento dos deveres impostos pela moral convencional, ela faz com que o homem viva também os seus princípios mais íntimos diante as pessoas, a si próprio o mundo. (Hryniewicz, Severo. Para filosofar; 5ª ed. Editora: Santelena.; p. 452)

Citaremos aqui dois personagens bíblicos: Jó e Abraão. Eles foram exemplos de duas faces diferentes da vida religiosa. Jó representa o homem que vive numa situação especial, a da provação que só pode ser compreendida na sua relação com Deus. Por isso, os amigos que iam visitá-lo não eram capazes de compreender a razão dos castigos que Deus o submetera. No entanto, Jó compreendia, pois tinha fé.
Por outro lado, Abraão vive claramente o impasse entre as esferas éticas e religiosas. Ao pedir que lhe sacrificasse, como prova de fé seu filho Isaac, Deus estava exigindo algo que fere a ética e o direito natural. Nenhuma ética justifica o sacrifício de uma pessoa, especialmente, se não há motivo suficientemente forte. No entanto, movido por uma fé absoluta nas promessas divinas, Abraão obedeceu. A fé levou-o para além da ética.

A fé é um salto além do ético; seu modelo é Abraão, que aceita o sacrifício do filho e, enquanto se prepara para sacrificar Isaac, acredita e espera contra toda esperança, ele acredita que fazendo a vontade de Deus mesmo que não a compreendendo naquele momento estaria fazendo o correto por que Deus nunca quer mal para seus filhos. (Vânni Sofia. p. 110)

O individuo perante Deus tem como único fim atender as exigências de sua condição, única e incompreensível para os outros. Assim, o dever absoluto não é o da observação dos comandos da ética ou das convenções sociais, mas o dever para com Deus.
Voltando a Kierkegaard: porque a Deus tudo é possível, o crente possui o antídoto contra o desespero; “o facto da vontade de Deus ser possível, faz com que eu possa rezar; mas se só a vontade de Deus fosse necessária, o homem seria essencialmente mudo, como um animal irracional”.
A fé é o inverso paradoxal da existência; a fé liga-se à estabilidade do princípio de toda a possibilidade
Para Kierkegaard, a fé consiste na eliminação total do desespero, é a condição em que o homem deixa de se iludir sobre a sua auto-suficiência para reconhecer a sua dependência em relação a Deus. Com fé, a vontade do homem em ser ele próprio não colide com a impossibilidade da auto-suficiência que determina o desespero, porque é uma vontade que se socorre do Poder em cujas mãos o próprio homem se colocou: o Poder de Deus.
O escândalo fundamental do cristianismo que nenhuma especulação poderá destruir, é a realidade isolada do ser humano perante Deus, em que todos os indivíduos, sejam eles poderosos ou escravos, existem igualmente na presença de Deus. Por isso, e neste sentido, todas as vidas se equivalem.
A definição de “homem religioso” coincide com a compreensão do Homem dos princípios da causalidade definidos por Fichte nos seus “estádios de evolução” da Humanidade. Quando Kierkegaard cita o exemplo de Abraão como o do “homem religioso”, nada mais faz do que seguir a cultura Apologética que foi introduzida na cristandade desde
Praticamente o início do cristianismo. Por exemplo: enquanto o cristianismo sempre produziu arte e beleza, mesmo na Baixa Idade Média, mas principalmente a partir da Alta Idade Média..
No fundo, Kierkegaard tem lógica na sua argumentação, mas sua visão é desfocada. Existem vários tipos de estetas; existem estetas éticos, e estetas que ignoram a ética – tudo depende do estádio de evolução espiritual em que o esteta se encontre. Atingindo a compreensão da repercussão da causalidade universal nos seus atos individuais, o espírito humano escolhe assumindo plena e conscientemente as suas responsabilidades perante si mesmo (perante a sua consciência), o que significa exatamente a Assumpção de responsabilidades.” A grande diferença do cristianismo em relação às outras duas religiões monoteístas consiste na introdução no Ocidente da noção de “livre-arbítrio” como valor em si e a substituição do “Deus castigador judaico pelo “Pai que ama” cristão. Da mesma forma que um artista compreende a arte “com a sua alma”; compreende a arte de uma forma que não consegue expressar por palavras mas antes pela representação da própria arte; entende a arte como algo intrinsecamente ligado ao seu ser mais profundo – compreensão da arte como sendo algo que incorpora o seu ser espiritual —, o espírito humano que compreende a causalidade universal em si mesmo e no âmago mais profundo do seu ser. Assim como o artista compreende a arte e a única forma de expressar essa compreensão é exercendo a própria expressão artística — porque a linguagem humana é parca em vocábulos que exprimam esse sentimento e idéia espiritual da compreensão da arte - o espírito humano que compreende a causalidade universal encontra na ação responsável e consciente a forma de expressar a sua compreensão das leis universais.
A “angústia” de Kierkegaard é a conseqüência da incompreensão do sentido da existência por parte de indivíduos que ainda não atingiram níveis superiores de consciência espiritual. A compreensão espiritual está para o espírito humano, como a capacidade artística está para o artista – é algo de intrinsecamente inerente à sensibilidade do ser, dificilmente traduzível por palavras da linguagem humana ideologicamente limitada. A “angústia religiosa” que Kierkegaard traduz como sendo a “fé”, faz parte do caminho espiritual, faz parte da incerteza de quem tem fé sem ter a certeza da fé.


[1] Todavia, há um outro Kierkegaard: o pensador posterior á Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ele reaparece como o típico representante da corrente existencialista, mas mutilado e estético, notadamente pelas leituras e interpretações francesas.

Nenhum comentário: